A neurociência encontra Vigotski
É primordial buscar correlacionar o que
já se sabe há décadas em educação com o que todo o aparato teórico-metodológico da
neurociência nos permite, atualmente, conhecer sobre o funcionamento do cérebro
GUILHERME BROCKINGTON E ANA PAULA MOREIRA, DA REVISTA
NEUROEDUCAÇÃO , 15 DE DEZEMBRO DE 2017 / 575 0
Crédito: Shutterstock
Quando o termo “neuroeducação” aparece, seja em revistas, artigos científicos ou nas escolas, é
bastante comum que esteja associado à ideia de que descobertas da neurociência
possam contribuir para melhorar a educação. É indiscutível que a compreensão
dos mecanismos de funcionamento dos processos de ensino e aprendizagem, bem
como o aperfeiçoamento das estratégias utilizadas para a sua condução, seja o
grande objetivo da união dessas duas áreas do conhecimento. Contudo, acreditar
que esse processo seja uma via de mão única, que vai da neurociência para a
educação, pode ser um grande equívoco tanto em termos de produção do
conhecimento quanto de uma efetivação concreta dessa fusão. Inúmeros
pesquisadores em todo o mundo estão se dedicando fortemente aos estudos nessa
interface, mesmo que estejamos em um estágio bastante inicial dessa empreitada.
Sabemos que ainda estamos bem distantes dos resultados que tanto
buscamos, e, nesse sentido, é preciso que se entenda a neuroeducação a partir
de uma visão que, de fato, integre esses dois campos de pesquisa, fugindo de simplificações grosseiras ou de ligações totalmente
artificiais entre eles. Assim, mais do que forçar o
uso de resultados neurocientíficos em processos educacionais, pensamos que seja
primordial buscar correlacionar o que já se sabe há décadas em educação com o
que todo o aparato teórico-metodológico das neurociências nos permite,
atualmente, conhecer sobre o funcionamento do cérebro. Isso porque, se a
premissa que acentua a unidade existente entre essas áreas é verdadeira (que,
conhecendo melhor os mecanismos cerebrais, seremos capazes de entender melhor
como ocorrem os processos de ensino e aprendizagem que, ao final, acontecem no
cérebro), diversos conhecimentos produzidos nesses dois campos de pesquisa
deverão, em algum momento, convergir. Além disso, qualquer integração, de fato,
entre duas áreas distintas do conhecimento implica o desenvolvimento de ambas,
e não de uma sempre em detrimento da outra.
Nesse sentido, apresentamos neste texto um exercício teórico na direção dessa integração. O objetivo é fomentar o debate acerca da possibilidade de entender
fenômenos conhecidos nas duas áreas aproximando-os, buscando explicitar
possíveis relações entre dimensões que, aparentemente, não se relacionam. Nesse
caso, abordaremos a interação professor-aluno do ponto de vista do sincronismo
cerebral e das considerações feitas pelo psicólogo Lev Vigotski – uma das principais
referências teóricas no campo da educação – sobre o conhecido conceito de zona
de desenvolvimento proximal.
Sincronização cerebral
Está cada vez mais claro para a ciência que nosso cérebro evoluiu para as interações sociais. Inúmeros estudos com mamíferos, indo dos pequenos ratinhos aos grandes
gorilas, evidenciam que estamos profundamente afetados por nosso ambiente
social. Além disso, quanto mais nossa civilização evolui, mais se torna
importante o papel das interações entre as pessoas, de modo que os laços
sociais são determinantes para o nosso desenvolvimento integral como ser
humano. Assim, do ponto de vista científico, nosso bem-estar depende
necessariamente de nossas conexões com os outros.
Isso acontece porque nossas ações, sentimentos e pensamentos estão
intrinsecamente vinculados à linguagem, que nasce e se desenvolve imersa em um
mundo social. Com o avanço da neurociência, é possível entendermos cada vez
mais os processos cerebrais envolvidos no desenvolvimento e uso da linguagem e
suas relações com o pensamento e a comunicação. Contudo, o que ocorre nos cérebros de duas pessoas enquanto elas estão engajadas
em uma interação social é muito pouco conhecido.
Dois pesquisadores da Universidade da Califórnia, Margaret Wilson e
Thomas Wilson, propuseram em 2005 um modelo teórico segundo o qual diversos
“osciladores” existentes no cérebro seriam a chave para o processo de interação
entre as pessoas. Eles são nada mais que populações de neurônios que
apresentam, coletivamente, uma periodicidade, um ritmo em suas atividades.
Esses osciladores endógenos já são conhecidos na literatura científica e estão
ligados a uma série de processos cognitivos, como a percepção, o controle motor
e a atenção. O que os autores fizeram foi estender a ideia de ativação acoplada
ou sincronismo neuronal para entender o mecanismo das interações entre os
indivíduos.
Segundo esses pesquisadores, durante uma interação social (como em um
diálogo) vários osciladores no cérebro da pessoa que ouve têm sua frequência de
atividade afetada por alguns dos osciladores do cérebro da pessoa que fala. E,
nessa interação oscilatória, os dois cérebros se sincronizam. Uma boa metáfora
para entender esse processo é a imitação. Quando uma criança imita
imediatamente um gesto que alguém está fazendo, ela estaria em perfeita
sincronia interativa: o que o outro faz leva a criança a fazer exatamente a
mesma coisa justamente por causa da interação entre eles. Note que esse exemplo
é metafórico, referindo-se apenas às semelhanças motoras dos gestos. Para
Wilson e Wilson, esse processo é muito mais profundo e apontaria para uma
capacidade humana intrínseca de perceber e produzir eventos de maneira
sincronizada com outras pessoas em um ambiente social.
Essa proposição teórica recentemente tem sido colocada a teste dado o
surgimento de uma nova técnica denominada hyperscanning. Ela permite investigar os
mecanismos neurais durante as interações sociais em tempo real ao registrar,
simultaneamente, as atividades neurais entre múltiplos sujeitos. Isso permite,
por exemplo, registrar ao mesmo tempo os cérebros de duas pessoas envolvidas em
uma conversa. Essa técnica tem sido aplicada tanto com ressonância magnética
funcional (fMRI) quanto com eletroencefalografia (EEG), e os resultados obtidos
até o momento têm sido bastante reveladores.
Uma pesquisa com EEG revelou uma sincronização na atividade cerebral de
dois indivíduos quando eles tocavam guitarra juntos. Outro estudo, de 2016, que
comparou o sincronismo neuronal de indivíduos em situações de cooperação ou
competição, evidenciou uma sincronização significativamente maior de populações
neuronais de determinadas regiões dos cérebros dos participantes quando
cooperavam do que quando competiam.
Ao se pensar a escola, não há dúvida alguma acerca da influência do ambiente social e suas
interações no desenvolvimento da criança. Assim, a necessidade de pesquisas que
possam, da maneira mais natural possível, investigar o que ocorre no cérebro
dos alunos durante uma aula é fundamental para quem trabalha com neurociência e
educação.
Em uma pesquisa recente, publicada em abril de 2017, a pesquisadora
Suzanne Dikker, da Universidade de Nova York, e colaboradores de outras
instituições, como o Instituto de Linguística da Universidade de Utrecht e o
Instituto Max Planck, investigaram o sincronismo entre os cérebros de
estudantes em uma sala de aula real. Usando um equipamento de EEG portátil, os
pesquisadores registraram simultaneamente a atividade cerebral de uma turma de
12 alunos do ensino médio em 11 aulas regulares distribuídas ao longo de um
semestre. As medidas foram tomadas enquanto os alunos faziam diferentes
atividades escolares, como assistir ao professor explicando um determinado
conteúdo, ver vídeos sobre o tema e participarem de discussões em grupo, sempre
em aulas de 50 minutos, aproximando-se o máximo possível das condições reais de
uma sala de aula. O objetivo principal dos pesquisadores era explorar a
hipótese de que a atividade neural sincronizada em um grupo de alunos seria
capaz de predizer envolvimento em sala de aula e nas dinâmicas sociais. A ideia
era encontrar possíveis marcadores neurais de engajamento social durante
interações no ambiente escolar.
Os pesquisadores também combinaram a técnica de hyperscanning com
autorrelatos dos estudantes com diferentes questionários, sobre como se sentiam
ao longo das aulas, como era o professor, qual era a afinidade com os grupos,
entre outros. Os resultados são muito interessantes e apontam para profundas
discussões futuras. Por exemplo, eles encontraram evidências de que fatores individuais (como foco e traços de
personalidade) contribuem fortemente para a sincronia cerebral. Isso implica que o sincronismo é um mecanismo que não ocorre por si
só, dependendo unicamente do estímulo que o gera.
Eles encontraram também resultados bastante relevantes quando se pensa a
sala de aula: a sincronização enquanto o professor falava comparada com o
momento em que eles assistiam aos vídeos e quando participavam de discussões em
grupo. Como esperado, a maior sincronicidade ocorreu
ao se engajarem nas discussões. Mais que isso,
tal sincronicidade estava correlacionada com a atenção sustentada desses
alunos, revelando que a intencionalidade compartilhada pode ser um suporte para
a cognição social em uma variedade de contextos sociopsicológicos.
Ao se comparar o professor palestrando com o vídeo, os resultados são
reveladores: ainda que houvesse uma variação entre os alunos, a sincronia foi
consistentemente maior para quando assistiam ao vídeo do que para as sessões de
palestras. Contudo, quanto mais os estudantes avaliavam bem o professor, menor
era a diferença de sincronia entre a sessão de vídeo e a de palestra.
Por fim, vale ressaltar um último resultado encontrado nessa pesquisa
que relaciona o “olho no olho” com o sincronismo cerebral. Ao analisarem os dados ao longo dessas
11 aulas, os pesquisadores descobriram que a interação face a face antes da
aula aumentava a sincronia cérebro-cérebro durante a aula. Para os autores,
olhar no rosto do outro serviu de “gatilho” para a alocação de recursos
envolvidos na interação interpessoal.
De maneira sumária, os autores advogam que os estilos de ensino, as
diferenças individuais e a própria dinâmica social medeiam a atenção no nível
neural. Para eles, esse processo afeta a sincronicidade neural dos estudantes,
levando-os a se envolver mais ou menos nas tarefas. Assim, alunos menos
engajados apresentam menores níveis de sincronia cérebro-cérebro com o restante
do grupo, sugerindo assim que essa sincronização pode ser um marcador sensível
para entender e prever as interações em sala de aula.
Sendo assim, com base nessas evidências é possível entender os
sincronismos desses osciladores endógenos como elementos fundamentais do desenvolvimento
cognitivo dos estudantes em um ambiente escolar. Mais que isso, é possível,
assim, buscar compreender quais estratégias didáticas podem propiciar maior
sincronicidade entre os estudantes e como isso afeta a aprendizagem. A pergunta
agora é: como conciliar esses achados com o
que já sabemos há décadas com os estudos em educação? Esse é o nosso desafio.
Zona de desenvolvimento iminente
Quando nos debruçamos sobre as especificidades produzidas pelo campo da
educação quanto à constituição e implementação dos processos de ensino e
aprendizagem, identificamos uma longa história de aproximações e recuos com as
teorias psicológicas sobre desenvolvimento humano. O princípio dessa história,
todavia, explicita uma conjuntura de subjugação das práticas pedagógicas a uma
espécie de algoz psicológico. Supostamente caberia à psicologia iluminar os
passos que deveriam ser dados por professores na seara da atividade docente.
Felizmente, a luta pela interrupção dessa conjuntura caminhou a passos largos e
produziu avanços produtivos que, certamente, devem ser atribuídos a psicólogos
e pedagogos. Por outro lado, e provavelmente em razão dessa subjugação
sistemática, em alguns espaços significativos da realidade escolar, muitos
educadores continuam e insistem em esperar que outras disciplinas ou campos de
conhecimento lhes ofereçam a receita com os passos da realização da atividade
pedagógica. Neste momento da história, o que notamos é que essa espera muitas vezes toma como fonte os conhecimentos produzidos pela neurociência. E, assim, uma vez mais nos rendemos todos – com mais ou menos intenção
– à reprodução de uma circunstância que já sabemos que devemos combater. É uma
tragédia denunciada.
Se a tomamos por denúncia é porque nos dedicamos ao intuito de alcançar
seus determinantes de uma perspectiva genética. E, assim, não podemos nos
furtar da tarefa de composição de um anúncio, ou seja, da oferta de
possibilidades de superação que, no mínimo, também nos convide a todos a
refletir de maneira mais consistente sobre os processos que constituem e
definem as atividades de estudo e aprendizagem.
Nesse sentido, importa que retomemos a compreensão acerca do vínculo
entre psicologia e pedagogia. Partilhamos a convicção teórico-metodológica de
que, se esse vínculo for adequadamente compreendido, ele pode esclarecer a
unidade que, realmente, constitui as dimensões biológicas, culturais,
psicológicas e sociais da educação.
Na direção dessa compreensão adequada, devemos resgatar o marco da
psicologia soviética que, ainda em 1927, acentuou a interface biologia e
cultura na definição dos processos educativos. Não seria, portanto, apressado
dizer que Vigotski, o eminente representante dessa escola, esclareceu que, na verdade, os
dispositivos neurais nunca estiveram à margem dessa interface. O funcionamento
cerebral é, exatamente, a base sobre a qual a cultura se assenta. Ela o
transforma. Mas, sem eles, a possibilidade da transformação nem sequer
existiria.
Para efetivarmos esse resgate, priorizamos a reflexão acerca de um dos
conceitos oriundos da psicologia soviética mais disseminados no meio
educacional: zona de desenvolvimento proximal. Não é incomum observarmos, seja em espaços de discussão acadêmica,
seja no cotidiano de atuação dos professores nas escolas, a identificação da
ideia de zona de desenvolvimento proximal com “a gota d’água”, o “clique” ou o
“insight” que faltava para que a criança atingisse o nível de
aprendizagem necessário estipulado por algum tipo de critério que, usualmente,
também não se sabe precisar. Atrelada a essa compreensão, surge a ideia de
mediação, definida como a tarefa de apoio, auxílio ou espécie de presença
significativa que o professor oferece ficando “entre” o aluno e o conhecimento
que ele deve acessar.
Anunciamos, pois, que endossamos aqui o entendimento de que essa é uma
compreensão equivocada do conceito elaborado por Vigotski. Ao propor essa
formulação, o psicólogo russo acentuava a relação entre a aprendizagem já
alcançada e aquela que se pretende conquistar com o recurso do processo de
instrução. Isso significa que as aprendizagens já
consolidadas se vinculam àquelas que ainda podem ser conquistadas. É a compreensão de que “aquilo que pode ser” de alguma forma já está
expresso “naquilo que é”. Para a psicologia histórico-cultural, os
conhecimentos científicos universalizados pela cultura humana devem ser
transmitidos pelos professores na escola porque as funções psíquicas superiores
(atenção, pensamento, memória etc.) só se desenvolvem na presença de
conhecimentos que as requeiram. Assim, essas funções essencialmente humanas
constituem-se como função da ação consciente e sistematizada de sujeitos
competentes. Desse modo, por exemplo, o desenvolvimento da palavra tece bases
que avançam e precipitam movimentos cada vez mais elaborados do pensamento. A
mediação, portanto, vincula-se ao conceito de zona de desenvolvimento proximal,
mas de maneira diferente. Ela constitui-se com o recurso dos signos, objetos
eleitos pelo professor, que, por essa razão carregam a universalidade produzida
pela cultura e acessam a singularidade dos sujeitos que se desenvolvem. Nesse
sentido, não deveríamos falar em zona de desenvolvimento proximal, mas sim
em zona de desenvolvimento iminente. Assim, enfatizamos de maneira mais fidedigna a iminência daquilo que
deve ser produzido por meio da ação sistematizada e consciente do professor.
Possíveis aproximações
As evidências científicas que anunciam os processos neurais envolvidos
no chamado sincronismo cerebral materializam a unidade acentuada por Vigotski
entre os processos culturais e biológicos que marcam o desenvolvimento humano.
E acreditamos que a sincronicidade neuronal ocorra justamente dentro da zona de
desenvolvimento iminente. Eis, agora, mais uma vez nossa defesa
primordial: a prática educativa é o coração dessa
unidade. E exatamente por isso cabe a todos nós, que de
muitas maneiras lidamos com a educação, o entendimento de que biologia, cultura
e interação social são dimensões que a constituem integralmente. Com isso,
queremos dizer que, se avançamos na compreensão dos processos que determinam o
seu funcionamento biopsicossocial, avançamos também na direção da organização
dos procedimentos didáticos que podem conduzir a sua operacionalização de
maneira cada vez mais eficiente.
Vigotski afirmou que o desenvolvimento segue rumos revolucionários e que
o encontro humano é muito mais do que uma interação que influencia nossos modos
de agir no mundo. Ele produz, isso sim, transformações genéticas, psiquismos
que se desenvolvem conjuntamente porque se conectam materialmente. Ansiamos que
essa reflexão assuma os contornos de um convite à compreensão de que aquilo a
que nos dedicamos é um fenômeno único, mas multideterminado. Não é uma disputa.
Mas carece sempre de que não abramos mão do rigor.
Fonte: REVISTA EDUCAÇÃO -
Acesso: 29.12.17 - http://www.revistaeducacao.com.br/neurociencia-encontra-vigotski/