sábado, 30 de dezembro de 2017

Vigotski e a neurociência

A neurociência encontra Vigotski

É primordial buscar correlacionar o que já se sabe há décadas em educação com o que todo o aparato teórico-metodológico da neurociência nos permite, atualmente, conhecer sobre o funcionamento do cérebro


     
Crédito: Shutterstock
Quando o termo “neuroeducação” aparece, seja em revistas, artigos científicos ou nas escolas, é bastante comum que esteja associado à ideia de que descobertas da neurociência possam contribuir para melhorar a educação. É indiscutível que a compreensão dos mecanismos de funcionamento dos processos de ensino e aprendizagem, bem como o aperfeiçoamento das estratégias utilizadas para a sua condução, seja o grande objetivo da união dessas duas áreas do conhecimento. Contudo, acreditar que esse processo seja uma via de mão única, que vai da neurociência para a educação, pode ser um grande equívoco tanto em termos de produção do conhecimento quanto de uma efetivação concreta dessa fusão. Inúmeros pesquisadores em todo o mundo estão se dedicando fortemente aos estudos nessa interface, mesmo que estejamos em um estágio bastante inicial dessa empreitada.
Sabemos que ainda estamos bem distantes dos resultados que tanto buscamos, e, nesse sentido, é preciso que se entenda a neuroeducação a partir de uma visão que, de fato, integre esses dois campos de pesquisa, fugindo de simplificações grosseiras ou de ligações totalmente artificiais entre eles. Assim, mais do que forçar o uso de resultados neurocientíficos em processos educacionais, pensamos que seja primordial buscar correlacionar o que já se sabe há décadas em educação com o que todo o aparato teórico-metodológico das neurociências nos permite, atualmente, conhecer sobre o funcionamento do cérebro. Isso porque, se a premissa que acentua a unidade existente entre essas áreas é verdadeira (que, conhecendo melhor os mecanismos cerebrais, seremos capazes de entender melhor como ocorrem os processos de ensino e aprendizagem que, ao final, acontecem no cérebro), diversos conhecimentos produzidos nesses dois campos de pesquisa deverão, em algum momento, convergir. Além disso, qualquer integração, de fato, entre duas áreas distintas do conhecimento implica o desenvolvimento de ambas, e não de uma sempre em detrimento da outra.
Nesse sentido, apresentamos neste texto um exercício teórico na direção dessa integração. O objetivo é fomentar o debate acerca da possibilidade de entender fenômenos conhecidos nas duas áreas aproximando-os, buscando explicitar possíveis relações entre dimensões que, aparentemente, não se relacionam. Nesse caso, abordaremos a interação professor-aluno do ponto de vista do sincronismo cerebral e das considerações feitas pelo psicólogo Lev Vigotski – uma das principais referências teóricas no campo da educação – sobre o conhecido conceito de zona de desenvolvimento proximal.
Sincronização cerebral
Está cada vez mais claro para a ciência que nosso cérebro evoluiu para as interações sociais. Inúmeros estudos com mamíferos, indo dos pequenos ratinhos aos grandes gorilas, evidenciam que estamos profundamente afetados por nosso ambiente social. Além disso, quanto mais nossa civilização evolui, mais se torna importante o papel das interações entre as pessoas, de modo que os laços sociais são determinantes para o nosso desenvolvimento integral como ser humano. Assim, do ponto de vista científico, nosso bem-estar depende necessariamente de nossas conexões com os outros.
Isso acontece porque nossas ações, sentimentos e pensamentos estão intrinsecamente vinculados à linguagem, que nasce e se desenvolve imersa em um mundo social. Com o avanço da neurociência, é possível entendermos cada vez mais os processos cerebrais envolvidos no desenvolvimento e uso da linguagem e suas relações com o pensamento e a comunicação. Contudo, o que ocorre nos cérebros de duas pessoas enquanto elas estão engajadas em uma interação social é muito pouco conhecido.
Dois pesquisadores da Universidade da Califórnia, Margaret Wilson e Thomas Wilson, propuseram em 2005 um modelo teórico segundo o qual diversos “osciladores” existentes no cérebro seriam a chave para o processo de interação entre as pessoas. Eles são nada mais que populações de neurônios que apresentam, coletivamente, uma periodicidade, um ritmo em suas atividades. Esses osciladores endógenos já são conhecidos na literatura científica e estão ligados a uma série de processos cognitivos, como a percepção, o controle motor e a atenção. O que os autores fizeram foi estender a ideia de ativação acoplada ou sincronismo neuronal para entender o mecanismo das interações entre os indivíduos.
Segundo esses pesquisadores, durante uma interação social (como em um diálogo) vários osciladores no cérebro da pessoa que ouve têm sua frequência de atividade afetada por alguns dos osciladores do cérebro da pessoa que fala. E, nessa interação oscilatória, os dois cérebros se sincronizam. Uma boa metáfora para entender esse processo é a imitação. Quando uma criança imita imediatamente um gesto que alguém está fazendo, ela estaria em perfeita sincronia interativa: o que o outro faz leva a criança a fazer exatamente a mesma coisa justamente por causa da interação entre eles. Note que esse exemplo é metafórico, referindo-se apenas às semelhanças motoras dos gestos. Para Wilson e Wilson, esse processo é muito mais profundo e apontaria para uma capacidade humana intrínseca de perceber e produzir eventos de maneira sincronizada com outras pessoas em um ambiente social.
Essa proposição teórica recentemente tem sido colocada a teste dado o surgimento de uma nova técnica denominada hyperscanning. Ela permite investigar os mecanismos neurais durante as interações sociais em tempo real ao registrar, simultaneamente, as atividades neurais entre múltiplos sujeitos. Isso permite, por exemplo, registrar ao mesmo tempo os cérebros de duas pessoas envolvidas em uma conversa. Essa técnica tem sido aplicada tanto com ressonância magnética funcional (fMRI) quanto com eletroencefalografia (EEG), e os resultados obtidos até o momento têm sido bastante reveladores.
Uma pesquisa com EEG revelou uma sincronização na atividade cerebral de dois indivíduos quando eles tocavam guitarra juntos. Outro estudo, de 2016, que comparou o sincronismo neuronal de indivíduos em situações de cooperação ou competição, evidenciou uma sincronização significativamente maior de populações neuronais de determinadas regiões dos cérebros dos participantes quando cooperavam do que quando competiam.
Ao se pensar a escola, não há dúvida alguma acerca da influência do ambiente social e suas interações no desenvolvimento da criança. Assim, a necessidade de pesquisas que possam, da maneira mais natural possível, investigar o que ocorre no cérebro dos alunos durante uma aula é fundamental para quem trabalha com neurociência e educação.
Em uma pesquisa recente, publicada em abril de 2017, a pesquisadora Suzanne Dikker, da Universidade de Nova York, e colaboradores de outras instituições, como o Instituto de Linguística da Universidade de Utrecht e o Instituto Max Planck, investigaram o sincronismo entre os cérebros de estudantes em uma sala de aula real. Usando um equipamento de EEG portátil, os pesquisadores registraram simultaneamente a atividade cerebral de uma turma de 12 alunos do ensino médio em 11 aulas regulares distribuídas ao longo de um semestre. As medidas foram tomadas enquanto os alunos faziam diferentes atividades escolares, como assistir ao professor explicando um determinado conteúdo, ver vídeos sobre o tema e participarem de discussões em grupo, sempre em aulas de 50 minutos, aproximando-se o máximo possível das condições reais de uma sala de aula. O objetivo principal dos pesquisadores era explorar a hipótese de que a atividade neural sincronizada em um grupo de alunos seria capaz de predizer envolvimento em sala de aula e nas dinâmicas sociais. A ideia era encontrar possíveis marcadores neurais de engajamento social durante interações no ambiente escolar.
Os pesquisadores também combinaram a técnica de hyperscanning com autorrelatos dos estudantes com diferentes questionários, sobre como se sentiam ao longo das aulas, como era o professor, qual era a afinidade com os grupos, entre outros. Os resultados são muito interessantes e apontam para profundas discussões futuras. Por exemplo, eles encontraram evidências de que fatores individuais (como foco e traços de personalidade) contribuem fortemente para a sincronia cerebral. Isso implica que o sincronismo é um mecanismo que não ocorre por si só, dependendo unicamente do estímulo que o gera.
Eles encontraram também resultados bastante relevantes quando se pensa a sala de aula: a sincronização enquanto o professor falava comparada com o momento em que eles assistiam aos vídeos e quando participavam de discussões em grupo. Como esperado, a maior sincronicidade ocorreu ao se engajarem nas discussões. Mais que isso, tal sincronicidade estava correlacionada com a atenção sustentada desses alunos, revelando que a intencionalidade compartilhada pode ser um suporte para a cognição social em uma variedade de contextos sociopsicológicos.
Ao se comparar o professor palestrando com o vídeo, os resultados são reveladores: ainda que houvesse uma variação entre os alunos, a sincronia foi consistentemente maior para quando assistiam ao vídeo do que para as sessões de palestras. Contudo, quanto mais os estudantes avaliavam bem o professor, menor era a diferença de sincronia entre a sessão de vídeo e a de palestra.
Por fim, vale ressaltar um último resultado encontrado nessa pesquisa que relaciona o “olho no olho” com o sincronismo cerebral. Ao analisarem os dados ao longo dessas 11 aulas, os pesquisadores descobriram que a interação face a face antes da aula aumentava a sincronia cérebro-cérebro durante a aula. Para os autores, olhar no rosto do outro serviu de “gatilho” para a alocação de recursos envolvidos na interação interpessoal.
De maneira sumária, os autores advogam que os estilos de ensino, as diferenças individuais e a própria dinâmica social medeiam a atenção no nível neural. Para eles, esse processo afeta a sincronicidade neural dos estudantes, levando-os a se envolver mais ou menos nas tarefas. Assim, alunos menos engajados apresentam menores níveis de sincronia cérebro-cérebro com o restante do grupo, sugerindo assim que essa sincronização pode ser um marcador sensível para entender e prever as interações em sala de aula.
Sendo assim, com base nessas evidências é possível entender os sincronismos desses osciladores endógenos como elementos fundamentais do desenvolvimento cognitivo dos estudantes em um ambiente escolar. Mais que isso, é possível, assim, buscar compreender quais estratégias didáticas podem propiciar maior sincronicidade entre os estudantes e como isso afeta a aprendizagem. A pergunta agora é: como conciliar esses achados com o que já sabemos há décadas com os estudos em educação? Esse é o nosso desafio.
Zona de desenvolvimento iminente
Quando nos debruçamos sobre as especificidades produzidas pelo campo da educação quanto à constituição e implementação dos processos de ensino e aprendizagem, identificamos uma longa história de aproximações e recuos com as teorias psicológicas sobre desenvolvimento humano. O princípio dessa história, todavia, explicita uma conjuntura de subjugação das práticas pedagógicas a uma espécie de algoz psicológico. Supostamente caberia à psicologia iluminar os passos que deveriam ser dados por professores na seara da atividade docente. Felizmente, a luta pela interrupção dessa conjuntura caminhou a passos largos e produziu avanços produtivos que, certamente, devem ser atribuídos a psicólogos e pedagogos. Por outro lado, e provavelmente em razão dessa subjugação sistemática, em alguns espaços significativos da realidade escolar, muitos educadores continuam e insistem em esperar que outras disciplinas ou campos de conhecimento lhes ofereçam a receita com os passos da realização da atividade pedagógica. Neste momento da história, o que notamos é que essa espera muitas vezes toma como fonte os conhecimentos produzidos pela neurociência. E, assim, uma vez mais nos rendemos todos – com mais ou menos intenção – à reprodução de uma circunstância que já sabemos que devemos combater. É uma tragédia denunciada.
Se a tomamos por denúncia é porque nos dedicamos ao intuito de alcançar seus determinantes de uma perspectiva genética. E, assim, não podemos nos furtar da tarefa de composição de um anúncio, ou seja, da oferta de possibilidades de superação que, no mínimo, também nos convide a todos a refletir de maneira mais consistente sobre os processos que constituem e definem as atividades de estudo e aprendizagem.
Nesse sentido, importa que retomemos a compreensão acerca do vínculo entre psicologia e pedagogia. Partilhamos a convicção teórico-metodológica de que, se esse vínculo for adequadamente compreendido, ele pode esclarecer a unidade que, realmente, constitui as dimensões biológicas, culturais, psicológicas e sociais da educação.
Na direção dessa compreensão adequada, devemos resgatar o marco da psicologia soviética que, ainda em 1927, acentuou a interface biologia e cultura na definição dos processos educativos. Não seria, portanto, apressado dizer que Vigotski, o eminente representante dessa escola, esclareceu que, na verdade, os dispositivos neurais nunca estiveram à margem dessa interface. O funcionamento cerebral é, exatamente, a base sobre a qual a cultura se assenta. Ela o transforma. Mas, sem eles, a possibilidade da transformação nem sequer existiria.
Para efetivarmos esse resgate, priorizamos a reflexão acerca de um dos conceitos oriundos da psicologia soviética mais disseminados no meio educacional: zona de desenvolvimento proximal. Não é incomum observarmos, seja em espaços de discussão acadêmica, seja no cotidiano de atuação dos professores nas escolas, a identificação da ideia de zona de desenvolvimento proximal com “a gota d’água”, o “clique” ou o “insight” que faltava para que a criança atingisse o nível de aprendizagem necessário estipulado por algum tipo de critério que, usualmente, também não se sabe precisar. Atrelada a essa compreensão, surge a ideia de mediação, definida como a tarefa de apoio, auxílio ou espécie de presença significativa que o professor oferece ficando “entre” o aluno e o conhecimento que ele deve acessar.
Anunciamos, pois, que endossamos aqui o entendimento de que essa é uma compreensão equivocada do conceito elaborado por Vigotski. Ao propor essa formulação, o psicólogo russo acentuava a relação entre a aprendizagem já alcançada e aquela que se pretende conquistar com o recurso do processo de instrução. Isso significa que as aprendizagens já consolidadas se vinculam àquelas que ainda podem ser conquistadas. É a compreensão de que “aquilo que pode ser” de alguma forma já está expresso “naquilo que é”. Para a psicologia histórico-cultural, os conhecimentos científicos universalizados pela cultura humana devem ser transmitidos pelos professores na escola porque as funções psíquicas superiores (atenção, pensamento, memória etc.) só se desenvolvem na presença de conhecimentos que as requeiram. Assim, essas funções essencialmente humanas constituem-se como função da ação consciente e sistematizada de sujeitos competentes. Desse modo, por exemplo, o desenvolvimento da palavra tece bases que avançam e precipitam movimentos cada vez mais elaborados do pensamento. A mediação, portanto, vincula-se ao conceito de zona de desenvolvimento proximal, mas de maneira diferente. Ela constitui-se com o recurso dos signos, objetos eleitos pelo professor, que, por essa razão carregam a universalidade produzida pela cultura e acessam a singularidade dos sujeitos que se desenvolvem. Nesse sentido, não deveríamos falar em zona de desenvolvimento proximal, mas sim em zona de desenvolvimento iminente. Assim, enfatizamos de maneira mais fidedigna a iminência daquilo que deve ser produzido por meio da ação sistematizada e consciente do professor.
Possíveis aproximações
As evidências científicas que anunciam os processos neurais envolvidos no chamado sincronismo cerebral materializam a unidade acentuada por Vigotski entre os processos culturais e biológicos que marcam o desenvolvimento humano. E acreditamos que a sincronicidade neuronal ocorra justamente dentro da zona de desenvolvimento iminente. Eis, agora, mais uma vez nossa defesa primordial: a prática educativa é o coração dessa unidade. E exatamente por isso cabe a todos nós, que de muitas maneiras lidamos com a educação, o entendimento de que biologia, cultura e interação social são dimensões que a constituem integralmente. Com isso, queremos dizer que, se avançamos na compreensão dos processos que determinam o seu funcionamento biopsicossocial, avançamos também na direção da organização dos procedimentos didáticos que podem conduzir a sua operacionalização de maneira cada vez mais eficiente.

Vigotski afirmou que o desenvolvimento segue rumos revolucionários e que o encontro humano é muito mais do que uma interação que influencia nossos modos de agir no mundo. Ele produz, isso sim, transformações genéticas, psiquismos que se desenvolvem conjuntamente porque se conectam materialmente. Ansiamos que essa reflexão assuma os contornos de um convite à compreensão de que aquilo a que nos dedicamos é um fenômeno único, mas multideterminado. Não é uma disputa. Mas carece sempre de que não abramos mão do rigor.

Fonte: REVISTA EDUCAÇÃO

Formar professor é fundamental para implementar Base


Professor de Stanford diz que ajuda financeira do governo à instrução de docentes é crucial para que norma seja efetiva
Entrevista com
David Plank
2.0k
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Renata Cafardo, O Estado de S.Paulo
18 Dezembro 2017 | 03h00
A aprovação da Base Nacional Comum Curricular, na última sexta-feira, pode ser uma oportunidade para que, finalmente, o Brasil invista na formação dos seus professores. É o que pensa o pesquisador da Universidade de Stanford, David Plank, que estuda o documento brasileiro em comparação ao Common Core, norma semelhante que está em vigor nos Estados Unidos desde 2010.
Mas, para o especialista, a Base só vai chegar às salas de aula se houver apoio financeiro do governo federal para os programas de treinamento dos professores, principalmente para os Estados e municípios mais pobres. “Aprovar a Base é uma grande vitória para o Brasil, dedicou-se muito tempo, foram muitas discussões para se chegar a isso, mas agora é que o trabalho duro começa”, diz.
Plank é americano, já foi professor da Universidade Federal da Bahia e atualmente dirige o Lemann Center, centro financiado pela Fundação Lemann em Stanford.

Por que é importante um país ter uma Base Curricular?
Eu digo que a Base simultaneamente traça objetivos e é uma alavanca. Os novos padrões de aprendizagem dão um rumo para o sistema educacional, especificam o que os estudantes precisam aprender em cada nível de ensino. E dão um direcionamento do que os professores têm que fazer, do que as escolas têm que fazer. Mas também exigem que o sistema faça outras mudanças, como redesenhar o sistema de avaliação. Porque você precisa testar os estudantes de acordo com os novos objetivos. Os Estados e municípios também precisam desenvolver currículos que vão ajudar seus professores a entenderem os novos padrões. E, para isso, precisam de novos livros didáticos. Os professores brasileiros, e os americanos também, dependem muito de livros didáticos. É preciso dar a eles guias claros sobre quais objetivos eles devem atingir e que passos precisam dar para chegar lá. 
Qual o momento certo para se começar a avaliar os estudantes conforme a Base? 
Não existe um momento mágico. Avaliações não te dizem nada interessante a não ser que elas estejam alinhadas ao que está sendo ensinado pelos professores. Senão, você tem um falso resultado do que os estudantes estão fazendo. Em Nova York, os professores estavam ensinando de acordo com os padrões antigos porque não sabiam quais eram os novos, mas as avaliações estavam cobrando os novos, que os estudantes nunca tinham visto e os professores nunca tinham ensinado (a polêmica descontentou pais e professores e fez com que NY desistisse de seguir o Common Core). Realmente, foi muito cedo. Mas outra questão é os professores começarem a aprender os novos objetivos e você manter as avaliações antigas. E, de novo, você tem um alinhamento errado entre avaliações e ensino. Eu diria que dois ou três anos são necessários para introdução dos novos padrões, para dar o tempo para os professores mudarem sua forma de ensinar. 
Os professores são ponto principal da implementação?
Com certeza. O papel central tem que ser feito pelos professores. Eles precisam se sentir consultados, incluídos. Eles precisam entender que esses são os padrões que eles acreditam e que, assim, vão fazer um trabalho melhor e os estudantes vão aprender mais. Mas eles sozinhos não podem fazer as mudanças que a Base prevê. Eles precisam de muita ajuda. A coisa mais importante que deve ser feita é a formação dos professores. Os novos professores precisam estar educados sobre os novos parâmetros e sobre como educar os estudantes para eles atingirem os objetivos. E o maior foco deve ser o trabalho com os professores que estão já nas salas de aula. Eles estão mais familiarizados com os padrões antigos ou nenhum padrão e vão continuar a fazer assim a não ser que sejam treinados para fazer diferente. 
Para isso, é preciso tempo e dinheiro.
Sim, tudo isso é muito caro. Se o governo federal quiser que a Base faça diferença, ele vai ter que dar ajuda financeira para Estados e municípios para financiar os programas de treinamento principalmente dos professores que estão nas salas de aula. A Base em si não significa muito. É uma coisa legal, boa, mas se você não investe os recursos necessários para implementação, ela pode não ter resultado algum. Agora é o momento de dar tempo e dinheiro para que os professores aprendam os novos padrões. Isso pode levar a grandes avanços na educação brasileira. 
Há críticos da Base que dizem que ela vai favorecer empresas que produzem livros didáticos, que vão vender para o governo esse material novo.
Uma implementação bem sucedida da Base exige novos livros didáticos, novos materiais, guias de estudo. A Base sozinha não tem nenhum sentido sem essas coisas. A questão aqui é como vamos produzir essas coisas. E não se precisamos dessa coisas ou se alguém vai ganhar dinheiro com isso. O governo, se quiser, pode produzir esses materiais, alguns países fazem isso. Nos Estados Unidos, a produção é uma coisa de mercado. O Brasil não é um país socialista, Estado Unidos também não. Alguém vai ganhar dinheiro e tudo bem. O governo só precisa ter certeza que o contrato é justo, que haja competição, que a empresa que produzir os melhores materiais será escolhida. 
O Common Core tem apenas as áreas de inglês e matemática. Aqui, a Base tem todas as áreas e até ensino religioso, que causou muita polêmica. Qual o melhor modelo?
Nos Estados Unidos, foi uma decisão estratégica focar em inglês e matemática porque são as duas disciplinas vistas como fundamentais para as outras. Você precisa ler para entender história e geografia e precisa de matemática para ciências. No Brasil, você está vendo a Base com ensino religioso, história, outras disciplinas que podem ter mais discordâncias. O que devemos ensinar aos estudantes sobre história? Muita gente discorda sobre como contar a história. O que nós decidimos foi: isso não é problema nosso. Deixem que os Estados decidam, as escolas decidam. Não quisemos focar em coisas que causariam discussões políticas. 
Colégio Anália Franco, em São Paulo. ‘A maioria aprende muito mais com a brincadeira e a leitura indireta’, afirma a diretora Nevinka Tomasich Foto: JF Diório/Estadão
Quando aprovada, a Base Nacional Comum vai dizer quais devem ser os objetivos de aprendizagem para os estudantes brasileiros em cada etapa de ensino. Nesta semana, o CNE divulgou 283 documentos com críticas e considerações sobre o documento. Muitos mencionavam a alfabetização. 
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“A alfabetização não é ensinar a letra, o som e aí a criança junta as duas coisas. Ela precisa ler e escrever em contextos reais”, diz a diretora pedagógica do Ensino Infantil e Fundamental 1 da Escola da Vila, na zona oeste da capital, Fernanda Flores. A instituição foi uma das que encaminhou carta ao CNE, pedindo mudanças. A escola questiona, por exemplo, trechos da BNCC que dizem que o aluno “não pode escrever qualquer letra em qualquer posição”.
Segundo a escola, “inúmeras investigações já indicaram que não é somente recebendo informações que o aluno aprende a escrever, mas sim colocando aquilo que aprende em jogo ao escrever, de forma ativa e consciente.” Segundo ela, a escola manterá esse enfoque na alfabetização, mesmo que a BNCC seja aprovada dessa maneira.
O Colégio Oswald de Andrade, na zona oeste, também não pretende modificar seu projeto pedagógico por causa da nova norma. “É um retrocesso em relação a tudo que se aprendeu nos últimos 30 anos. A alfabetização não é uma transcrição, ela é cognitiva”, afirma a coordenadora pedagógica da escola, Rosane Reinert. Ela afirma estar preocupada com termos como ‘treino’ e ‘cópia’ presentes no texto que, “com muito custo, conseguimos tirar da cabeça dos professores”. E explica que as crianças aprendem as letras em uma construção com os professores quando, por exemplo, ouvem histórias ou ajudam a escrever um recado na lousa. “A professora vai perguntando, que letra vem agora para escrevermos ‘parque’, começamos de baixo para cima, onde já vimos essa letra?” 
As ideias de alfabetização defendidas pelas escolas particulares têm como origem o construtivismo, movimento que começou a ganhar força no Brasil depois da década de 1980 e coloca a criança - no lugar do professor - como foco da aprendizagem. Ele se contrapõe a métodos tradicionais que usam cartilhas, por exemplo, com ensino silábico. Mas não há um padrão na forma de alfabetizar entre as escolas do País. 
Os últimos resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização, exame federal, mostram que 54,7% das crianças do 3.º ano estão em níveis insuficientes de leitura e não conseguem identificar informações explícitas em um texto.

Currículo

De acordo com Rossieli Soares da Silva, secretário da educação básica do Ministério da Educação (MEC), órgão responsável pela BNCC, as críticas estão sendo analisadas e podem ser incorporadas. Mas, segundo ele, o documento não diz como as escolas devem ensinar.
“A Base não é currículo. Ela não está dizendo que os alunos têm de decorar o alfabeto e, sim, que têm de saber o alfabeto”, afirma o secretário. 
Para a coordenadora de Língua Portuguesa do Colégio Lourenço Castanho, na zona sul de São Paulo, Katia Nanci, a aprendizagem do som e das letras é importante, mas não pode ser o foco do processo. A escola apresenta várias formas de literatura - como parlenda, rimas e trava-língua - para despertar o interesse das crianças para leitura e escrita. 
O material (didático) não é impositivo. Ele dá opções para os professores e as redes de ensino estão muito felizes com esse formato. É isso o que importa
Rossieli Soares da Silva, secretário de Educação Básica do Ministério da Educação
“A maioria aprende muito mais com a brincadeira e a leitura indireta”, completa Nevinka Tomasich, diretora do Colégio Anália Franco, na zona leste, que também não pretende seguir as recomendações. 
Não há consenso sobre a obrigatoriedade das escolas em cumprir a BNCC depois que for aprovada no Conselho. Segundo o integrante do CNE e presidente da comissão da Base, Cesar Callegari, ela passará a ser uma “bússola” para escolas, mas não haverá punição. 
“A Base prescreve direitos dos alunos, mas não especifica como esses direitos devem ser concretizados. Isso fica a critério das escolas e sistemas.” Já o presidente do CNE, Eduardo Deschamps, afirma que as escolas que ignorarem a norma podem ser proibidas de abrir matrículas ou ter cassada a autorização para funcionar.” 

Escolha de livro didático já motiva atrito com entidades

A escolha dos livros didáticos que serão comprados pelo Ministério da Educação (MEC) para as escolas públicas é alvo de críticas e preocupação de especialistas. Ainda sem uma versão definitiva para a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o edital da compra prevê que as obras sigam a versão ainda não oficial do documento, o que é questionado por entidades. 
O MEC abriu um chamamento público para selecionar 600 professores da rede pública e privada da educação básica e superior que tenham, pelo menos, mestrado para avaliar cerca de 260 coleções de livros para alunos dos anos iniciais do ensino fundamental (do 1.º ao 5.º ano) e manuais de professores da educação infantil que poderão ser selecionados e enviados às escolas em 2019. 
Nesta quinta-feira, 9, a Associação Brasileira de Currículo (ABdC) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) anunciaram que não vão indicar profissionais para atuar na avaliação por considerarem que o edital contém muitos equívocos. Os nomes indicados por elas seriam depois selecionados pelo MEC para compor uma comissão, que vai organizar o processo de avaliação. 
As duas associações criticam a adoção da BNCC como referência, uma vez que o documento ainda não foi aprovado, e dizem que o edital prevê materiais que controlam e limitam a atuação do professor - é determinado, por exemplo, que as obras contenham propostas concretas e completas de avaliação da aprendizagem para crianças de 0 a 3 anos e estabelece que os livros proponham avaliação de 15 questões por bimestre ou 20 por trimestre. 
“Do modo como foi colocado no edital, o material didático fere a autonomia do docente em sala de aula. É um total controle da atividade do professor. Não adianta nós avaliarmos se o conteúdo tem boa qualidade ou não, quando a sua filosofia é completamente equivocada e nociva ao ensino. Por isso, decidimos por nos abster de participar do processo”, disse Inês Oliveira, presidente da ABDC.
A saída das duas entidades preocupou a Associação Brasileira dos Autores de Livros Didáticos (Abrale) e a Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares (Abrelivros), que consideram que a ABdC e ANPEd têm condições de uma avaliação com base em critérios pedagógicos. Nos últimos dias, grupos religiosos têm divulgado mensagens nas redes sociais convidando professores que queiram fiscalizar e denunciar conteúdos que promovem a ideologia de gênero a se candidatar para as avaliações.
“Vemos com muita apreensão toda essa discussão que está ocorrendo em torno do edital. Defendemos que a avaliação seja orientada por critérios pedagógicos e não por questões externas, religiosas ou políticas. Entendemos que o momento que vivemos pede uma avaliação criteriosa feita por associações ligadas aos meios acadêmicos”, disse Silvia Panazzo, presidente da Abrale. 

Rossieli Soares da Silva, secretário da Educação Básica do MEC, disse que é direito das entidades não indicar profissionais e afirmou que outras já apontaram centenas de nomes para a comissão. Ainda segundo o secretário, é essa comissão que vai estabelecer os critérios profissionais e acadêmicos para a seleção dos avaliadores, o que vai garantir que não haja interferência política.